domingo, 17 de fevereiro de 2008

As capacidades necessárias para a alfabetização –Miriam Lemle

Para que uma pessoa possa aprender a ler e a escrever, há alguns saberes que ela precisa atingir e algumas percepções que ela deve realizar conscientemente. Quais são esses saberes e essas percepções, e como ajudar o alfabetizando a atingi-los?
0 que o alfabetizando precisa saber?
A primeira coisa que a criança precisa saber é o que representam aqueles risquinhos pretos em uma página branca. Esse conhecimento não é tão simples quanto parece a quem já o incorporou há muitos anos ao seu saber. Observe que, para entender que os risquinhos no papel são símbolos de sons da fala, é necessário compreender o que é um símbolo.
A idéia de símbolo é bastante complicada. Uma coisa é símbolo de outra sem que nenhuma característica sua seja semelhante a qualquer característica da coisa simbolizada. Tomemos alguns exemplos de símbolos. Cor vermelha, no sinal de trânsito, simboliza a instrução Pare. A cor verde simboliza a instrução Ande. 0 dedo polegar voltado para cima simboliza a informação Tudo bem. Bandeira branca, na praia, simboliza Mar calmo. Uma bandeira listada de preto e vermelho, no Rio de Janeiro, simboliza o Clube Flamengo. Esses exemplos de símbolos de uso comum em nossa vida servem para ilustrar a idéia de que a relação entre um símbolo e a coisa que ele simboliza é inteiramente arbitrária, ou seja, a razão da forma de um símbolo não está nas características da coisa simbolizada.
Uma criança que ainda não consiga compreender o que seja uma relação simbólica entre dois objetos não conseguirá aprender a ler.
Vamos ao segundo problema. As letras, para quem ainda não se alfabetizou, são risquinhos pretos na página branca. 0 aprendiz precisa ser capaz de entender que cada um daqueles risquinhos vale como símbolo de um som da fala. Assim sendo, o aprendiz deve poder discriminar as formas das letras. As letras do nosso alfabeto têm formas bastante semelhantes, e por isso a capacidade distingui-las exige - refinamento na percepção. Tomemos alguns exemplos. A letra p e a letra b diferem apenas na direção da haste vertical, colocada abaixo da linha de apoio ou acima dela. 0 b e o d diferem apenas na posição da barriguinha em relação à haste. 0 p e o q diferem entre si por esse mesmo traço, isto é, a posição da barriquinha. Note que os objetos manipulados em nosso dia-a-dia não se transformam, ao mudarem de posição.
Uma escova de dentes é sempre uma escova de dentes, esteja virada para cima ou para baixo. Um copo de cabeça para baixo, ainda é um copo. Mas um b com haste para baixo vira p, e um p virado para o outro lado vira q. Do mesmo modo, um n com uma corcova a mais vira m, um e alongado para cima passa a valer l, um a sem o seu cabinho passa a ser o e assim por diante. São sutis as diferenças que determinam a distinção entre as letras do alfabeto. A criança que não leva em conta conscientemente essas percepções visuais finas não aprende a ler.
0 terceiro problema para o aprendiz é a conscientização da percepção auditiva. Se as letras simbolizam sons da fala, é preciso saber ouvir diferenças lingüisticamente relevantes entre esses sons, de modo que se possa escolher a letra certa para simbolizar cada som. A diferença sonora entre as palavras pé e fé, por exemplo, está apenas na qualidade da consoante inicial: o [p] é uma consoante oclusiva, enquanto o [f] é fricativa. As palavras toca e doca, tia e dia distinguem-se por outra característica de suas consoantes iniciais: a consoante [t] é enunciada sem voz, enquanto a consoante [d] é enunciada com voz. As palavras vim e vi têm como única diferença de pronúncia o traço de nasalidade da vogal.
Convém lembrar que quando nos referimos a sons da fala, colocamos o símbolo entre colchetes. Essa é uma convenção de notação utilizada nos estudos de fonética. Quando se tratar de letras, o símbolo virá grifado.
É claro que só será capaz de escrever aquele que tiver a capacidade de perceber as unidades sucessivas de sons da fala utilizadas para enunciar as palavras e de distingui-Ias conscientemente umas das outras. Note que a análise a ser feita pela pessoa é bem sutil: ela deve ter consciência dos pedacinhos que compõem a corrente da fala e perceber as diferenças de som pertinentes à diferença de letras.
Recapitulando, essas três capacidades analisadas são as partes componentes da capacidade de fazer uma ligação simbólica entre sons da fala e letras do alfabeto. A primeira é a capacidade de compreender a ligação simbólica entre letras e sons da fala. A segunda é a capacidade de enxergar as distinções entre as letras. A terceira é a capacidade de ouvir e ter consciência dos sons da fala,com suas distinções relevantes língua .
Mas a escrita contém, ainda, outras idéias escondidas.
A corrente de sons que emitimos ao falar é a representação de um sentido,de um conteúdo mental.Certas seqüências de unidades de som correspondem a unidades de sentido, ou conceitos. Por exemplo: a seqüência de sons [pEI representa a unidade de sentido extremidade dos membros inferiores do corpo humano. A seqüência de sons[ali] representa a unidade de sentido em localização longínqua de quem fala. Chamamos de palavras os acasalamentos de som e sentido que utilizamos como tijolos na expressão dos nossos pensamentos. Pois bem. Quem vai aprender a escrever deve saber isolar na corrente da fala as unidades que são palavras, pois essas unidades é que deverão ser escritas entre dois espaços brancos.
Temos aí, então, o quarto problema para o alfabetizando: captar o conceito de palavra. Essa unidade palavra é tão natural, que sua depreensão quase não constitui problema para os aprendizes. Assim, se um principiante na escrita quer escrever a frase
a bola dela é amarela
é pouco provável que ele erre na segmentação das palavras, escrevendo, por exemplo,
abo lade laearna rela.
O tipo de dificuldade na depreensão de unidades vocabulares que se observa muitas vezes na prática do ensino são coisas como umavez,nonavio, minhavo, ou seja, falta de separação onde existe uma fronteira vocabular. O inverso - a colocação de um espaço onde não há fronteira - é mais raro. A alocação errada de fronteiras vocabulares onde não existem acontece, por exemplo, com palavras femininas que começam com [a] - minha miga, em vez de minha amiga ou com palavras masculinas que começam com [u] o niverso, em vez de o universo.
0 importante, na idéia da unidade da palavra, é que ela é o cerne da relação simbólica essencial contida numa mensagem lingüística: a relação entre conceitos e sequências de sons da fala. Temos , portanto, na escrita, duas camadas sobrepostas de relação simbólica: uma relação entre a forma da unidade palavra. e seu sentido ou conceito correspondente, e uma relação entre a seqüência de som, da fala que compõem a palavra e a seqüência de letras que transcrevem a palavra.
Esquematizando, temos, por exemplo:
O homem pensa na idéia panela, representa essa idéia pronunciando a palavra [panela] e representa os sons da palavra pronunciada por meio da seqüência de letras p a n e l a . Há uma primeira ligação simbólica entre o sentido de panela e os sons componentes da palavra [panela], e uma segunda ligação simbólica entre os sons dessa palavra falada e as letras com que a palavra é escrita.
Na prática escolar da alfabetização, há uma questão polêmica ligada ao fato de que a escrita contém, na verdade, esses dois níveis de representação simbólica: representação de conceitos através de sons através de letras. A polêmica é a seguinte:
alguns acham essencial que todas as palavras utilizadas nas primeiras etapas da alfabetização sejam conhecidas pelo alfabetizando. Por exemplo: se na região onde o alfabetizando mora não existe uva, não deveria ser usada a palavra uva nas classes de alfabetização. Outros acham que pode ser bom aprender palavras novas e brincar com sons desprovidos de sentido, pois isso ajuda o aprendiz a compreender a idéia de que as letras representam os sons da fala, e não diretamente o sentido. É certo que a escrita representa o sentido, mas indiretamente, intermediada pela representação dada pelas letras aos sons da fala. Por enquanto, fica a questão colocada, para ser pensada.
Há outra unidade da estrutura da língua importantíssima na escrita: a unidade sentença, que é representada começando por letra maiúscula e terminando por ponto. Se considerarmos que o alfabetizando já precisa ser capaz de identificar, na corrente da fala, as partes que são sentenças, estabeleceremos como quinto problema para o alfabetizando o reconhecer sentenças. Mas essa necessidade não precisa ser colocada logo de início, pois o aprendiz pode aprender a tomar consciência dessa unidade no decorrer de suas primeiras leituras.
Outro saber que precisa ser estabelecido logo no início do trabalho da alfabetização é a compreensão da escrita: a idéia de que a ordem significativa das letras é da esquerda para a direita na linha, e que a ordem significativa das linhas é de cima para baixo na página. Note que isso precisa ser ensinado, pois dessa compreensão decorre uma maneira muito particular de efetuar os movimentos dos olhos na leitura. A maneira de olhar uma página de texto escrito é muito diferente da maneira de olhar uma figura ou uma fotografia.








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